segunda-feira, agosto 15, 2011

A sombra

Tocava o violoncelo durante a noite e dormia de dia. Era esta a forma que ele tinha encontrado para viver consigo mesmo, de forma tranquila, ou escondida.

Não seria necessariamente uma fuga, mas o vazio no espaço/tempo que ele achara e onde sentia encaixar.

Desenhava os sons que sonhava de dia, no seu estado de alienação, para à noite os tocar como figuras personificadas em temperaturas amenas de um instrumento que era o mais próximo da sua voz e que lhe permitia cantar sem cantar, falar sem se ouvir.

Salomão, hesitante, elevava o arco e suspirava, gemia, falava, cantava, gritava as sensações que não transpunha para a realidade e projectava na pauta, desenhava na tela branca o que tinha deixado há muito de dizer, mas nunca de sentir – o seu ser, que negligenciava para não encarar a verdade, a de que há muito cessara de existir.

Aprisionado em si mesmo, transformado torre de marfim, nenhuma janela para tornar os seus apelos audíveis, Salomão, o homem transformado instrumento de cordas, limitava-se a deixar ecoar no interior da torre os seus pensamentos, transformados sombras vagueantes que subiam e desciam as paredes de tão alta construção.

Lá fora  a vida continuava e o homem arco, atrevia-se a descer à cave e a ouvir o som dos pés dos que passavam, intrigados com a torre tão hermeticamente comprimida e revestida de simplicidade, harmonia.

Do seu interior não se ouviam gemidos, ou sons aflitivos. Lá no alto não se viam nuvens, nevoeiros ou feitiços melancólicos. E o seu interior não era rico em mistério, porque na verdade a torre rodeara-se de um cenário calmo e tranquilo, envolto em relva verde e fofa que muitos procuravam para encontrar paz.

Mas Salomão sabia que à medida que o tempo passava o arco passou a ser o seu braço e o seu tronco desenvolveu enormes fios que se transformaram em cordas. Até o seu coração deixou de bater, pois cada nota fazia suster a respiração, para libertar o fôlego de mais e mais ideias que se perdiam, enquanto sobras, torre acima.

A sua consciência perdeu a compreensão do que lhe acontecera e a sua vontade desaparecera e apenas seguia a batuta que gesticulava bem alto, e a partitura indicava a direcção. Os sons, esses nunca escapavam ao interior da torre que escondia cada vez mais, nos seus cantos e recantos, a humidade da cave fria e fechada e sombria.

Rapidamente, anos e anos depois, vertia água e o verde que rodeava a torre sufocava Salomão no seu interior e a sua respiração cada vez sufocava mais.

Perdido, libertava os sons do seu corpo, a sua forma de gritar bem alto, mas sem nunca chorar ou lamentar. Salomão procurava ouvir-se, mas só sentia a vibração das cordas que o amarravam e libertavam, as cordas que o prendiam e soltavam os sons que o arco faziam ecoar. As cordas que ironicamente apertavam a sua garganta, mas o permitiam comunicar.

Um dia, um dos caminhantes que visitavam o exterior verdejante da torre, uma mulher, observara com maior atenção e vira a torre mudar a sua forma. Um rosto emergia da mesma. Curiosa pelo insólito, todos os dias a mulher visitava a torre e verificava a mudança que operava de dia para dia, cada vez mais parecido ao rosto de um homem cujo sorriso se ia transformando num semblante vazio.

Foi quando o rosto deu lugar a uma entrada na torre, que se atreveu a entrar onde pensou não haver interior, como se de uma rocha maciça se tratasse.

Seco e vazio, assim sentiu ser o espaço.

No chão, um arco de violoncelo. Ao canto, uma cadeira.

Como se de um recém nascido se tratasse, a mulher caminhante juntou as sombras que se haviam espalhado durante anos pela torre e aconchegou-as no seu colo, moldou-as, e com a sua voz a ressoar do seu peito, vibração tranquila, sentada na cadeira, ensaiou movimentos com o arco no vazio como se possuísse ao seu colo uma grande bola de pensamentos que iria libertar, agora que o interior da torre já conhecia a luz do dia.

Conta a lenda que a mulher caminhante tocou durante vários dias um violoncelo imaginário, sem nunca parar por sede, fome ou fadiga.

Ela tocava, embalava, o seu corpo vibrava, o seu ventre retomou o som que ecoava e o violoncelo desapareceu, a mulher adormeceu, o seu corpo desapareceu, a sua sombra desvaneceu...

4 comentários:

Anónimo disse...

Boa alteração de imagem. Mais sóbrio.Gosto!bj

Imaginário disse...

Caro Anónimo, obrigado. Pelo comentário positivo e por comentar.

Espero que esteja mais apelativo e que o conteúdo também o seja.

Espero continuar a merecer a atenção e a visita regular.

Obrigado.

su disse...

Não sou propriamente uma anónima,mas nao estava a conseguir identificar. Acho mm que esta mais apelativo e a escrita sempre em grande...Continua.

Imaginário disse...

Obrigado :)